Chefes das Forças Armadas se reuniram 14 vezes com Bolsonaro após derrota na eleição e enquanto golpe era debatido, diz PF
O ex-presidente Jair
Bolsonaro estava inconformado com a derrota na eleição quando se
reuniu com os três comandantes das Forças Armadas para uma reunião no Palácio
da Alvorada no dia 1º de novembro de 2022, dois dias após o segundo turno.
Naquele momento, os chefes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ouviram
pela primeira vez a discussão se haveria alguma maneira de militares intervirem
e o desfecho das urnas ser questionado.
Não
seria a última vez em que o ex-mandatário discutiria planos de uma intentona
golpista. Os registros de entrada do Palácio da Alvorada que constam no
inquérito da PF mostram 14 oportunidades em que ao menos um dos três
comandantes das Forças estiveram no local. Em pelo menos quatro encontros,
Bolsonaro citou ideias variadas como decretar Estado de Sítio, Estado de Defesa
e operação de Garantia da Lei e da Ordem, conforme depoimentos dos próprios
militares.
A investigação da Polícia Federal (PF)
revelou que a trama golpista incluiu abordagens insistentes à cúpula das Forças
Armadas, num movimento que, segundo o inquérito, teve anuência do então
ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, e contou com o entusiasmo do
comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier Santos. Os dois militares
figuram entre os 37 indiciados pela PF.
Para os investigadores, a
tentativa de golpe de Estado só não se concretizou porque houve resistência dos
comandantes da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro do ar Carlos Baptista Júnior,
e do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes. Os dois foram ouvidos como
testemunhas e a colaboração deles foi fundamental para esclarecer parte dos
planos de Bolsonaro no fim de seu governo, segundo a PF.
Dos 14 encontros registrados
após a derrota nas urnas, quatro tiveram a presença dos três comandantes. Em
cinco ocasiões, dois compareceram e, em outras cinco, somente um deles estava.
Freire Gomes, do Exército, foi o mais assíduo: esteve no Alvorada 12 vezes.
Almir Garnier, da Marinha, foi ao local em oito oportunidades, e Baptista
Júnior, da Aeronáutica, esteve cinco vezes.
Conversas logo após o resultado
Nesse período, Bolsonaro estava recluso no Alvorada, mas ativo nos
bastidores. A primeira das reuniões com os comandantes ocorreu logo no dia 31
de outubro, um dia após a derrota de Bolsonaro. Freire Gomes e Garnier
estiveram no local, em horários separados, mas próximos, no fim da tarde
daquela segunda-feira. No 1º de novembro, houve o primeiro encontro com os três
comandantes juntos.
Depois, Bolsonaro voltou a chamar Freire Gomes e Almir Garnier no dia seguinte,
dia 2 de novembro, para um encontro à tarde na residência oficial. O presidente
se mostrava lamurioso, indignado com a derrota e até “deprimido” nessa época,
segundo pessoas próximas.
Nos dias seguintes, houve
outras reuniões com dois dos comandantes. No dia 6, estiveram presentes
Baptista Júnior e Freire Gomes; no dia 8, os comandantes do Exército e da
Marinha. No dia 12, Freire Gomes voltou ao local sozinho.
Proposta de decreto
Bolsonaro parecia ter recuperado o ânimo no dia 14 de novembro,
como notaram os comandantes das Forças Armadas em depoimento. Pela segunda vez,
os três estiveram juntos no Alvorada e ouviram de Bolsonaro e seus auxiliares
os achados de um relatório produzido pelo Instituto Voto Legal, que apontava
falsamente para problemas no sistema de votação do país. Para os comandantes, ficou
evidente ali que o presidente seguia acalentando o desejo de reverter sua
derrota para Lula.
A partir daí, as conversas se
intensificaram. Nos dias 17 e 22, há novo registro de reuniões com os três
comandantes — além do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira. Em um desses
encontros, também estava presente Carlos Rocha, presidente do Instituto Voto
Legal, organização que produziu para o PL um relatório questionando as urnas
eletrônicas, que foi rejeitado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
No dia 24, houve mais um
encontro — que não consta nos registros do Alvorada, mas que foi confirmado
pelo GLOBO. Foi um dos mais tensos do período: Bolsonaro expôs ideias para um
decreto que, entre outras coisas, permitiria intervenção no TSE e abriria
espaço para prisões de rivais políticos. Garnier se colocou à disposição,
Baptista Júnior protestou e Freire Gomes ameaçou prender Bolsonaro caso o plano
fosse adiante, conforme depoimentos colhidos pela PF. A defesa de Garnier
afirmou que "reitera a inocência do investigado, esclarecendo que ainda
não teve acesso integral aos autos".
Insistência de ministro
Apesar do embate, os comandantes ainda teriam de resistir às
sugestões golpistas em pelo menos outros dois momentos. No dia 7 de dezembro,
Bolsonaro voltou a tratar da “minuta golpista” com o ministro da Defesa e os
comandantes de Exército e Marinha. Filipe Martins, então assessor da
Presidência e apontado como um dos responsáveis por redigir o decreto golpista,
também estava. O chefe da Força Aérea Brasileira (FAB) estava fora de Brasília
e não participou.
Por isso, foi chamado ao
Ministério da Defesa uma semana depois, no dia 14 de dezembro, para uma reunião
juntamente com os demais comandantes. Na ocasião, o ministro Paulo Sérgio disse
que tinha uma minuta em mãos para “revisão”. Baptista Júnior questionou se o
conteúdo do documento levaria à ruptura democrática e recusou-se a vê-lo. Foi
acompanhado nos protestos por Freire Gomes e deixou a sala, de acordo com seu
relato à PF.
O chefe da FAB sentia-se
cercado. Dias antes, num evento no interior de São Paulo, fora abordado pela
deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), aliada de primeira hora do presidente,
que o cobrava a não deixar Jair Bolsonaro “na mão”.
O último alerta para Baptista
Junior soaria em 16 de dezembro quando o general Augusto Heleno o procurou
pedindo uma carona para Brasília no avião da Força Aérea. Segundo o ministro, o
presidente o chamara para uma reunião de emergência que, de tão importante, o
faria perder a formatura de seu neto. O comandante da FAB levou Heleno à
capital, mas não sem antes dizer que não compactuaria com uma trama golpista.
Na reta final do governo,
ainda houve visitas solitárias. No dia 15 de dezembro, Freire Gomes esteve no
Alvorada sozinho. Garnier, o único que teria concordado com o plano, voltou ao
local nos dias 18 de 27 de dezembro.
A PF mostrou que, até os
últimos dias de mandato, Jair Bolsonaro e parte de seus aliados insistiram em
formas de questionar a eleição e seguir no poder. Eles chegaram a planejar o
assassinato de Moraes, de Lula e do vice, Geraldo Alckmin, além de terem
conspirado com militares de escalão mais baixo e das Forças Especiais do
Exército. Para a PF, a insistência dos comandantes em resistir ao avanço
golpista foi decisiva.
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